[Livros] Harry Potter brasileiro? Mais que isso
Se você acompanhou as aventuras do bruxo Harry Potter durante a
infância e a adolescência é muito provável que já tenha desejado
estar naquele mundo mágico e encantador. Não só isso, mas também
se questionado sobre como seria uma escola de magia no Brasil. Pois
bem, a carioca Renata Ventura aceitou o desafio de trazer esse
universo à nossa vasta terra e assim nasceu a saga do bruxo Hugo
Escarlate, com dois livros lançados até o momento: A Arma
Escarlate e A Comissão
Chapeleira.
Negro,
pobre, nascido em favela dominada pelo tráfico, Hugo é de cara um
personagem extremamente diferente do fofo inglês Harry. Não havia
como serem semelhantes, por sinal. Hugo é um garoto que sofreu
privações e violências a vida inteira, desenvolvendo vários
complexos e comportamentos nocivos tanto a ele mesmo quanto aos
outros.
“'Fiasco?'
O homem lançou-lhe um olhar torto e Hugo percebeu que havia acabado de arruinar seu disfarce de puro-sangue. A contra-gosto, o trocador explicou, 'Fiasco é como chamamos filhos de bruxos que nascem sem magia. Há outros termos por aí, mas esse é o mais usado.'” (A Arma Escarlate, p. 67)
Mas antes de prosseguir vamos à sinopse: Hugo, nascido Idá Aláàfin
Abiodun (também… com esse nome quem não seria complexado?), é um
garoto de 13 anos que descobre
ser um bruxo no meio de um
tiroteio (poético, não?). A partir daí, Hugo foge da favela em que
mora e inicia seus estudos na escola Nossa Senhora do Korkovado, onde
aprenderá a dominar seus poderes com esperança de uma vida melhor.
Porém, o mundo não é um sonho e Huguinho ainda sofrerá muito e
mais um pouco.
Sinopse vaga? Sim, eu sei. Mas é difícil falar sobre a história de
A Arma Escarlate sem dar spoiler
porque, inicialmente, a trama não é bem delimitada. A base do
enredo é o contato de Hugo com esse mundo. E como é esse mundo,
Pedro? Aff, um plágio de Harry Potter? Não, longe disso, leitorx.
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Capa da primeira edição do livro (inclusive, é a que tenho =D ) |
O universo do livro baseia-se no
mundo criado por J.K. Rowling, porém sem
funcionar como uma fanfic
ou algo do tipo. Renata Ventura, a autora, realiza várias
referências à série inglesa, algumas óbvias, outras nem tanto,
mas a inspiração para aí. Ela
tem uma proposta bem modernista e bebe de várias fontes para criar
algo inusitado. A ideia
principal do livro é levantar vários questionamentos sobre a
realidade brasileira a partir das diferenças entre os dois livros.
Há
cinco escolas de magia no Brasil (uma em cada região). No primeiro
livro, apenas a Korkovado, escola do Sudeste localizada dentro do
morro do Corcovado, é mostrada, e no segundo, a de Salvador, mas nos
livros seguintes as demais também farão suas aparições. Porém,
não esperem a organização britânica. Estamos no Brasil, certo? Ou
seja, esperem escolas tão boas quanto nosso ensino público:
professores faltantes, direção corrupta, falta de recursos… É, a
lista é grande. Ou seja, se a comparação com a saga de Harry deve
ser feita é para explicitar todos os problemas estruturais que nosso
país lindo tem.
“Todos olharam para ele, percebendo sua presença, e o professor sorriu, 'O boto, sim. Obrigado pela contribuição, meu jovem. O boto… O mais perigoso de todos para vocês, meninas. Estão me ouvindo? Ele é tipo um golfinho cor-de-rosa, muito fofinho, mas que se transforma em homem para enganar mocinhas inocentes. Muito cuidado com ele, meninas. Ele não liga para idade. Fiquem sempre ao lado de seus pais, estão me entendendo?'” (A Comissão Chapeleira, p. 287)
Quer dizer então que o livro só
quer criticar o Brasil? Não exatamente. Lembra quando eu falei da
sua inspiração modernista? Então, A Arma Escarlate
faz um trabalho enorme de valorização da cultura nacional, de
mostrar que, mesmo com tudo de ruim, devemos
ter orgulho de nós mesmos. Há a presença de personagens do nosso
folclore, feitiços escritos em idiomas africanos e indígenas e
etc. Renata soube se inspirar
no global mas sem rejeitar quem nós somos.
Outro ponto positivo para a série é os personagens. Complexos,
interessantes e realistas, não me surpreenderia se a autora fosse
psicóloga tamanha a riqueza deles. A começar por Hugo. Já
mencionei no início do texto, mas é bom falar novamente: ele não é
um protagonista fácil e comum. Impulsivo, orgulhoso, hostil, rude,
insensível… São vários os adjetivos ruins para Hugo, um menino
capaz tanto de ser apenas chato quanto de cometer crueldades
chocantes. Acredite: você vai odiá-lo.
Mas pera, isso é uma coisa boa?
Dependendo do autor, sim, e felizmente esse é o caso. A
Arma Escarlate é a saga de
autoconhecimento e crescimento de Hugo. Ele vai sofrer e causar
sofrimento, mas vai aprender e mudar com o tempo. Ele não é um mau
garoto, apenas passou a vida em meio a violências, com poucos e
fracos bons exemplos e raros carinhos.
Ele pode ter mudado de ambiente, mas
muitas coisas ficaram impregnadas nele, muitas cicatrizes foram
deixadas (literalmente, em alguns casos). Se você quer um
protagonista para amar, sinto muito, livro errado. Mas se você quer
alguém que seja realista e deseja acompanhar seu desenvolvimento e
crescimento, aí sim você encontrará nele um ótimo material.
“Hugo permaneceu com os olhos no Dona Marta, mais ou menos no local onde seu contêiner devia estar. 'Minha mãe não sabe que eu sou bruxo', ele respondeu, pensativo. 'Ela é evangélica. Nunca entenderá.'
[…]
'Ei...' Caimana se aproximou solidária, 'Ser bruxo não é pecado. Você nasceu assim, não é sua culpa!'” (A Arma Escarlate, p. 442)
Os
demais personagens também não fazem feio. Logo ao chegar na
Korkovado, Hugo depara-se com a divisão dos alunos entre os Pixies e
os Anjos, com os primeiros sendo mais rebeldes e questionadores e os
outros mais conservadores. O protagonista se aproxima dos Pixies e,
mesmo não sendo um membro oficial do grupo, passa boa parte do livro
na companhia deles.
Os Pixies são formados por Viny
Y-Piranga, radical e ufanista, Capí, um rapaz extremamente
pacifista, Caimana Ipanema, namorada de Viny, elfa e surfista, e
Índio, “conservador” mas que por algum motivo entrou no grupo.
Todos são muito bem desenvolvidos e vão além de meros
coadjuvantes, possuindo panos
de fundo sólidos e interessantes.
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Renata Ventura, a autora. Curiosidade: conheci o livro diretamente por ela no Skoob, uma rede social de livros (e vocês não imaginam como ela é fofa <3 td=""> |
Enfim,
já devo ter falado demais e espero que tenha ao menos te convencido
a dar uma chance ao livro. Leia! Acredite, é muito bom, é nacional
e levanta várias questões interessantes sem deixar de ser divertido
e mágico.
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