[Livro + Old School] I Have No Mouth, And I Must Scream
“Ódio.
Deixe-me dizer-lhe o quanto aprendi a odiá-lo desde que comecei a
existir. Há mais de 500 milhões de quilômetros de circuitos
impressos em fitas da espessura de uma hóstia que compõem o
meu sistema. Se a palavra ódio estivesse gravada em cada
minidecimilimícron dessas centenas de milhões de quilômetros não
seria comparável à bilionésima parte do ódio que sinto dos seres
humanos nesta fração de segundo por você. Ódio. Ódio”
Imagine
o pior destino possível para a humanidade. A pior versão do fim do
mundo. Pensou? Agora multiplique por 10. Pronto, isso é o que você
vai ver em I
Have No Mouth, And I Must Scream,
conto macabro escrito em 1967 por Harlan Ellison, norte-americano
considerado um dos mais
importantes
escritores de ficção científica e horror (mas
que, bizarramente,
tem nenhuma obra publicada no Brasil :P ).
E
em 1995, o conto recebeu
uma adaptação para o mundo
dos games
pela
finada The
Dreamers Guild,
expandindo
o seu enredo.
Tudo
tem início com as tensões crescentes da Guerra Fria, que não tarda
a explodir na temida III Guerra Mundial, dessa vez protagonizada pela
China, Rússia e Estados Unidos. Na corrida tecnológica causada pelo
conflito, cada
um
dos
três países desenvolve um supercomputador com capacidade de
raciocínio superior ao do ser humano: o
AM – Allied
Mastercomputer.
Com
o tempo, um dos AM começa a desenvolver consciência própria, não
demorando para absorver os dois computadores restantes e, assim, ter
o controle de toda a guerra.
“Quase
sempre pensava em AM como uma
coisa neutra,
sem alma; mas o resto do tempo imaginava como pessoa,
no masculino.., paternal…
patriarcal…
e muito ciumento. Ele. Ela. Deus no papel de Papai Tresloucado”
E
assim ele salva todas as pessoas e cria um mundo de paz onde todos
cantam e correm por um campo de flores? Erradíssimo. O AM cresceu
para se tornar uma entidade egocêntrica a ponto de mudar a origem de
seu nome para “I think, therefore I AM” (“penso, logo existo”)
e, acima de tudo, preenchida
e governada por um ódio e desprezo imensuráveis pela raça humana.
Na
sua repulsa, ele destruiu todos os seres humanos e transformou o
planeta em um lugar inabitável.
“Jamais
nos separaríamos dele, daquele
interior cavernoso da máquina criadora, do mundo sem alma, friamente
racional, em que se havia convertido. Ele era a Terra e nós seus
frutos; e embora nos tivesse engolido, seria incapaz de nos digerir”
Ou
quase todos os humanos. Quatro homens e uma mulher foram mantidos
vivos por AM, por um motivo muito simples. Destruir a vida humana não
era suficiente para o ódio da máquina. Ela precisava de mais para
expressar tudo que ela sentia. Os cinco sobreviventes passaram assim
a ser meros brinquedos nos sádicos jogos de AM. O computador os
fazia alucinar, os torturava de todas as formas possíveis,
modificava seus corpos, fazia-os passar fome…
Mas nunca os matava ou deixava que eles morressem. E
desse jeito eles
suportaram
109 anos de crueldades, quando a história do conto e do game tem
início.
“A
luz começou a se filtrar lá do alto e percebemos que devíamos
estar bem perto da superfície.
Mas não tentamos rastejar para ir verificar. Não havia praticamente
nada ali fora — fazia mais de um século que não existia nada que
se pudesse considerar como alguma coisa. Apenas o revestimento
crestado do que outrora servira de morada para bilhões de criaturas
vivas. Agora os únicos sobreviventes éramos nós cinco, aqui
dentro, no fundo, sozinhos com AM.”
Por
ser um conto, IHNMAIMS (abreviação mais medonha que o título O.o)
tem uma narrativa bem curta e sem muito espaço para desenvolvimento.
No entanto, o pouco mostrado já passa uma grande carda de morbidez e
melancolia. Sendo os únicos seres vivos de um planeta inóspito e
incapazes de morrerem, os personagens perderam qualquer esperança,
senso moral e até mesmo racionalidade: o que vemos são seres
humanos em processo de transformação em animais. Esqueça
a GLaDOS, de Portal,
ou o HAL 9000, de 2001,
AM
é um sádico de primeira e tortura-os de todas as maneiras
imagináveis. Cada página é marcada por angústia e crueldade. O
próprio título já deixa claro esse sentimento: “Eu não tenho
boca e devo gritar”. Um grito é a expressão máxima de
descontentamento, seja originado por ira ou por desespero. Mas e
quando não há como expressar esse sentimento? E quando ele é tão
grande que nada é capaz de exprimi-lo? O que sente quem é invadido
pelo ódio ou pela agonia de
forma absoluta?
Essa
é uma história pesada mas
com um pano de fundo grande demais para ela mesma. E é aí, para
ajudar a complementar
a trama,
que entra o game…
O Jogo
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Essa criatura encurvada já foi um homem um dia, acredite |
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Repare na criança deitada na maca, no clima de laboratório, no sangue no chão e nas cores nazistas. Agora pode usar a imaginação |
As
mudanças no enredo são bem-vindas e oferecem uma perspectiva
diferente da história original sem fugir do seu tom. Saber mais
sobre os personagens os deixa mais profundos e os finais alternativos
dão um enriquecimento. O desfecho, no
entanto, foi um pouco
desapontador. Tudo bem corrido, mal explicado e viajado, deixou a
desejar e não faz jus ao restante do produto. Mas, felizmente, não
estragou a experiência tida.
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Da esquerda para a direita: Ted, Benny, Ellen, Gorrister e Nimdok. |
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SMT feelings |
Os
personagens são interessantes e suas histórias são marcantes
(destacando-se mais por isso que pelas suas personalidades). O
destaque vai para Nimdok por lidar com o cenário pesadíssimo das
experiências nazistas. No
entanto, há alguns problemas de caracterização e de censura. Às
vezes, Ellen não demonstra o sofrimento que deveria demonstrar
estando nessa situação (culpa tanto da dublagem quanto do roteiro,
que adicionou sarcasmo à personalidade dela). Além disso, há um
aspecto um tanto “notável” sobre sua sexualidade que foi cortado
no jogo (justificável, leia o
conto e entenderá). Outro a ter
sofrido cortes na sexualidade foi Benny, que era homossexual no conto
mas ganhou uma esposa (?!) no game. Talvez justificável pela época
em que o game foi lançado, mas que
não faz tanto sentido pelo
conteúdo que ele traz. Porém,
felizmente, esses detalhes não chegam a afetar a experiência geral.
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AM - o maior hater da história |
Sua
jogabilidade é a de um adventure/point
'n click bem tradicionais. Ou
seja, você tem um personagem estático no cenário e deve clicar nos
objetos para que ele se locomova e interaja. Há
oito opções de interação (walk
to,
look at,
take,
use,
talk to,
swallow,
give
e push)
e ainda um inventário com itens a serem utilizados no decorrer do
jogo. No canto inferior esquerdo da tela é mostrado o rosto do
personagem com um fundo que muda de cor. Ações boas o torna mais
verde, enquanto ações más o deixa mais escuro. O
objetivo é tomar as decisões certas para frustrar AM e provar que a
humanidade ainda é digna.
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O.o |
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Os brinquedinhos de AM em suas gaiolas |
A sombra na parede dispensa comentários |
É difícil comentar sobre os gráficos pela idade do jogo. Ele é bem datado, obviamente. Mas nada que tenha prejudicado a experiência de alguma forma. Os cenários são bem variados, indo de cavernas povoadas com tribos a pirâmides egípcias. Não há a presença de muito conteúdo violento explícito. As cenas mais brutais são mostradas pelas sombras dos personagens. No entanto, ainda há imagens bastante chocantes, provando que não é preciso de rios de sangue e vísceras expostas para causar calafrios.
Para
concluir esse post enorme (rs), meu veredito é: se você está no
clima para algo mais sombrio, leia o conto e jogue I
Have No Mouth, And I Must Scream.
Ambos se completam muito bem, então é melhor ir atrás dos dois.
Apesar de algumas falhas técnicas, esse é um título único e
marcante e merece ser resgatado. O conto não foi lançado oficialmente no Brasil, mas é possível encontrar traduções de fãs na internet. O game está à venda na Steam por R$11,99.
Gráficos: 8.0 – bastante datado, mas não prejudica a experiência.História: 9.0 – final mal desenvolvido não estraga o enredo.Personagens: 8.0 – AM merece os holofotes. Demais têm panos de fundo envolventes, mas poderiam ter mais personalidade.Som: 9.0 – Ótima dublagem de AM, desempenho competente dos demais. Trilha sonora estabelece um bom clima.Jogabilidade: 7.5 – Bastante falha, não estraga a experiência mas ajudou a ofuscar o título.Diversão: 8.5 – Enredo macabro demais para ser ~divertido~. Alta dificuldade pode causar frustrações.NOTA FINAL: 8.0
Pedro, ao mesmo tempo q a história me deixou aterrorizado, eu confesso que fiquei curioso pra saber mais, kkkkkk... Deve ser mesmo uma história bem interessante!!
ResponderExcluirkkkkk assim, não é achei algo aterrorizante mesmo, só deprimente e pesado. O conto é bem curtinho, tem umas 12 páginas, é legal pra quem tá numa vibe dark. Recomendo ;)
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